Os Direitos da Personalidade

quinta-feira, fevereiro 24, 2005

OS DIREITOS DA PERSONALIDADE

1.0. INTRODUÇÃO
Segundo Aristóteles, na divisão primeira do saber, este claramente se distingue entre o especulativo (ou teorético) e o prático. Enquanto aquele objetiva o conhecimento puro, ou seja, adquirir conhecimento pelo simples prazer de tê-lo e, por seu intermédio, contemplar a verdade; este procura, através da conduta, os bens da vida.
Do primeiro saber, o especulativo, derivam as ciências especulativas ou teoréticas, que visam captar essências.
Já o saber prático conduz às ciências práticas, cujo objetivo é dirigir a atividade humana. E para este mister estabelecem normas visando moderar e regula(riza)r a ação e o comportamento do homem.
O Direito é, destarte, uma ciência prática, porquanto sua finalidade última é precisamente disciplinar o querer e o agir do homem em sociedade. É visando a continuidade do homem - não só como espécie, mas também como gênero - que o Direito teve origem e é continuamente construído e aperfeiçoado. Buscar a justiça, propiciar a segurança jurídica para o bem comum: são esses os pilares que fundamentam e legitimam a ordem jurídica.
1.1. A IMPORTÂNCIA DA PALAVRA ESCRITA NA EVOLUÇÃO DO HOMEM
Nos pareceu importante destacar aqui a importância da palavra escrita na evolução do homem.
A linguagem, em sentido amplo, é um sistema de signos utilizado objetivando a comunicação, tendo como razão primeira a produção de sentido.
Todos os seres vivos se comunicam através das mais variadas formas de linguagem - seja ela corporal, oral, musical, plástica - pois todos os animais têm seus rituais para acasalamento, não raro, com movimentos que foram assimilados pelo balé humano; movimentos que denunciam a defesa de território, da prole; sons variados que avisam sobre ameaças, perigos; cantos cuja complexidade de sons usados só hoje, com o avanço da tecnologia, começam a ser desvendados. Há espécies de pássaros, como o joão-de-barro, que faz o seu ninho modelando-o em barro; e outras espécies, cujos machos decoram o ninho com flores e conchas e, numa espécie de campeonato, o que mais bem ornamentado estiver será escolhido pela fêmea.
Mas a linguagem humana é considerada como o mais complexo de todos os sistemas de signos, pois através deles podemos representar não só o mundo em que vivemos - mas tudo que pudermos imaginar - estando aí o que diferencia a nossa linguagem de todos os outros gêneros animais. Trata-se de sistema de representação arbitrário, de significados coletivos e compartilháveis, variáveis ao longo do tempo de acordo com as mudanças culturais, sociais e históricas de cada povo ou nação.
Sem a linguagem - considerada em sentido amplo, seja a ela escrita, verbal ou de qualquer outro ramo semiótico - impossíveis se tornariam a unidade, a continuidade e a evolução social: trata-se, pois, de um dado constitutivo das sociedades humanas.
Na linguagem, pela linguagem e com a linguagem são construídos incontáveis significados, urgindo que produzam sentido, pois a razão principal de qualquer ato de linguagem é comunicar a outrem o nosso pensamento.
Mas se a linguagem da palavra nos destaca de todos os outros animais por permitir-nos pensar sobre coisas, pessoas ou situações distantes de nós, seja no espaço ou no tempo, o tipo de linguagem que, definitivamente, nos diferencia dos outros seres animais é a escrita. É através da palavra escrita que, não só expressamos, mas eternizamos as nossas idéias, os nossos sentimentos, levando-os ao conhecimento de outros seres humanos e de outros grupos da sociedade - em lugar e tempo mui distantes.
O advento da palavra escrita, para a historiografia tradicional, marca o fim da Pré-História.
Em sua evolução, o homem primeiro conseguiu se comunicar através de gestos, depois por intermédio das palavras. Mas isso não lhe bastou: voltou-se, então, para a possibilidade de representar o que desejava transmitir gravando-o em algum suporte. Surge aí a primeira forma de escrita, denominada pictografia.
Os pictogramas (ou mitogramas) foram os desenhos figurativos encontrados nas paredes de cavernas (rupestres). Eram representações de animais, gravações coloridas de cavalos, veados e bisões. E o que visava o homem primitivo com esses desenhos? A tese mais aceita é a que afirma tratar-se de oferendas visando sorte em caçadas futuras. A intenção puramente artística de seus autores foi descartada por estarem as pinturas sobrepostas em quatro camadas. Assim sendo, privilegiou-se o sentido mágico, que melhor refletiria as necessidades e experiências daquele período histórico.
Durante toda a sua trajetória a civilização humana se utilizou de ritos e registros, marcas que revelaram como o homem ocupou o espaço onde esteve e como foram as suas relações com os outros homens e a natureza. São alterações no meio ambiente como marcas rudimentares no chão, nas paredes das cavernas, desenhos, recortes que nos fazem vislumbrar como os homens constituiam seus grupos, como estiveram e agiram no mundo.
Curioso é observarmos como a informática resgatou essa linguagem através de desenhos figurativos com os ícones na barra de ferramentas existentes em inúmeros programas para computadores.
Posteriormente, na fase logográfica da escrita, surgiram os ideogramas, assim chamados por revelarem uma unidade lingüística vinculada à idéia que se pretende transmitir. Exemplos desse tipo de escrita analítica (também chamada morfeogramas) são a cuneiforme, a hieroglífica e a chinesa (esta última a única que continua sendo utilizada nos dias atuais).
Mas ainda hoje faz-se uso de símbolos gráficos que representam diretamente uma idéia, como os algarismos, certos sinais de trânsito etc.
Na continuidade da evolução da escrita surgem os fonogramas, que são sinais gráficos que representam sons. São destes que se originaram, entre outros, alfabetos como o fenício, o árabe, o grego e o latino. O que estas civilizações guardam em comum é que se destacaram na atividade comercial. Os fenícios, ao lançarem-se ao mar, buscavam, em terras afastadas, os suprimentos que lhes faltavam. Só que essa atividade comercial exigia a confecção de rudimentares contratos mercantis. Daí terem eles sido levados a criar um alfabeto, composto de vinte e dois sinais que representavam os sons consonantais simples.
Os árabes também criaram um alfabeto próprio, em linha, escrito da direita para a esquerda.
Há ainda os sistemas de sílabas, de que são exemplos as escritas lineares A (1650-1400 a.C.) e B (1450-1200 a.C.), utilizadas em Creta. Estas escritas remanescem em tábuas de argila, que ainda não foram inteiramente decifradas.
Do alfabeto fenício se desenvolveram os alfabetos clássicos, sendo deles os mais importantes o grego e o latino.
A possibilidade de serem os sons simbolizados em gráficos estimulou e impulsionou a comunicação irreversivelmente, trazendo o desenvolvimento da cultura e do conhecimento da humanidade. As obrigações assumidas, os costumes e as tradições, antes evidenciadas, preservados unicamente pela forma oral, agora encontravam na escrita o seu asseguramento, a sua eternização.
É, pois, através da linguagem escrita, produzida e desenvolvida socialmente, que o homem passa, do registro meramente espacial, para o registro de fatos e acontecimentos: é por intermédio dela que melhor consegue dar aos seus sentimentos, às suas idéias um caráter duradouro.
Assim fatos, quantidades, locais, impressões passam a poder ser relembrados sem que se precise recorrer tão-somente à memória humana.
Desde as primeiras marcas produzidas com instrumentos rudimentares - fosse no chão, nas paredes das cavernas, em pinturas no próprio corpo - até a atual era da informática muito se conquistou nos mais variados ramos do conhecimento humano; sim, muitas foram as conquistas culturais, artísticas, sociais, políticas e econômicas.
Mas para que todos os seres humanos possam, igualitariamente, desfrutar dessas conquistas é preciso que aprendam não só a ler - mas a entender o que lêem; é preciso que estejam preparados para acompanhar os avanços do conhecimento humano e se adequar às vertiginosas mudanças tecnológicas.
A palavra escrita torna-se poder para quem a domina: saber escrever e entender o que lê é chave para uma constante evolução.Com a escrita o ser humano expande e preserva a sua memória, pois quando lemos revivemos fatos passados, ou entramos em contato com as experiências de outrem, de modo que sobre todos eles podemos refletir e aprender, concordar ou discordar. Através da leitura aprimoramos conhecimentos, formamos a nossa própria opinião, enriquecemos o nosso poder de argumentação; e, ao aumentar o nosso grau de discernimento, possível será para nós - se quisermos - evitar erros graves já cometidos no passado.
Um dos grandes exemplos dessa maior compreensão dos fatos e das idéias que a palavra escrita pode nos conferir ocorreu na Grécia , pois a filosofia como a entendemos no mundo ocidental teve, sem dúvida, como um dos fatores que possibilitaram o seu surgimento os registros dos mitos e das lendas, em linguagem escrita, por poetas como Homero, com a Ilíada e a Odisséia (séc. IX a.C.), e Hesíodo (séc. VIII a.C.), com a Teogonia. A leitura e a conseqüente reflexão sobre todos aqueles mitos e lendas, o confronto entre o pensamento mítico e os acontecimentos do dia-a-dia, levaram os gregos a, de forma progressiva, considerá-los insatisfatórios para explicar a realidade, possibilitando, assim, o surgimento do pensamento filosófico-científico.
A intensidade de emoção que um texto pode nos provocar pode ser muito diferente de acordo com as experiências pelas quais passamos ao longo do tempo: hoje um texto pode nos causar sentimentos diametralmente opostos aos que nos causou há alguns anos atrás ou aos que nos causará no futuro. Os Livros Sagrados das diferentes religiões (a Bíblia, o Alcorão, o Bhaghavad Gitá etc.), por exemplo, têm provocado sentimentos e interpretações várias na sucessão dos séculos.
A linguagem escrita permite que um autor possa continuar influenciando os pensamentos dos que o lerem muitos anos, muitos séculos, até milênios após o seu desaparecimento. É assim que pensadores como Platão, Aristóteles, só para citar dois expressivos nomes, dentre tantos outros, continuam a influenciar-nos, a levar-nos a profundas reflexões. Eles, através da palavra escrita, ganharam uma nova forma de vida, alcançaram uma espécie de imortalidade.
Através da escrita o homem eterniza-se, tem a possibilidade de desenvolver e evoluir a sua cultura e pode se tornar - se aprender com as lições do passado - senhor de sua própria história.
1.1. O DIREITO E A LINGUAGEM ESCRITA
O pensamento, a linguagem e a ação, isolados, têm subsistência impossível. Contudo, nas suas relações recíprocas, formam um trinômio que se reforça incessantemente.
Através da linguagem se expõe o pensamento e se determina a ação - se expressam as idéias, as emoções, os valores, os direitos e as sanções.
Não há negar que a unidade, a evolução e a própria continuidade das sociedades humanas têm sido possíveis graças à linguagem.
A linguagem é, pois, um dado constitutivo das nossas sociedades: as várias esferas do conhecimento humano se desenvolvem graças à sua existência e o seu intermédio.
Toda e qualquer ciência se vale da linguagem para existir, expor suas teorias, desenvolver-se.
O Direito, sem dúvida, é uma das que mais dela depende e se utiliza.
Quando os homens passaram a viver em grupos, formando embrionárias comunidades, começaram a reconhecer a necessidade de criar mecanismos de freio a condutas que pusessem em risco a própria continuidade da existência humana. Destarte, quando há a saturação da utilização da força física, da força bruta, da qual se valiam os homens nas cavernas, surge o reconhecimento dos direitos. O homem passou a admitir a necessidade de por a sua própria conduta sob regras que impusessem o respeito aos direitos daqueles com quem ele interagia nas comunidades.
Mas, a palavra oral não foi suficiente para que aquelas regras fossem cumpridas. Observou-se que os pactos não forneciam as garantias mínimas para as relações econômicas e políticas. Principalmente o medo e o interesse desvirtuavam os testemunhos.
Surge, então, proeminente, como solução, a linguagem escrita, pois desta forma adotada a lei se revestia de legitimidade, enquanto eram propalados e mesmo perpetuados os princípios de Direito.
Deste modo, o homem, gregário, por depender de suas interrelações sociais, entendeu que a anarquia e o caos precisavam ser evitados ao máximo. E a consecução de tal desiderato vem se tornando possível através do Direito, ao fixar regras coercíveis de conduta.
Por conseguinte, para a sociedade humana, tanto a linguagem - principalmente a escrita - quanto o Direito são inerentes e imprescindíveis.

2.0. O DIREITO E A SOCIEDADE
O Direito, como ciência do espírito que é, germinou na consciência do homem porque este vive em sociedade.
Mas, por que, diferentemente das sociedades de outras espécies animais, a humana teve necessidade de fazer surgir o Direito? Certamente porque na humana há fatores que inexistem nos outros tipos de sociedade animal.
Infelizmente, o que mais nos tem diferenciado das outras espécies animais é também o que mais nos distancia da racionalidade.
Embora sempre nos orgulhemos em proclamar que somos seres que nos destacamos de todo o resto do reino animal, não só por possuirmos um sistema nervoso mais desenvolvido, mas - principalmente - por dispormos de um raciocínio muito mais apurado que qualquer outra espécie - justificando, assim, ser a nossa sociedade a mais evoluída e organizada; o fato é que temos nos destacado mais pela irracionalidade, pela dificuldade em não se deixar dominar por sentimentos inferiores, como o egoísmo, a ganância, a inveja.
Sim, nenhum outro gênero animal transformou em fontes de disputas intermináveis, cruentas e perigosamente desestabilizadoras de toda a sua própria sociedade - a terra, o ouro, o petróleo. Nenhum outro animal cria formas inumeráveis, intermináveis, inimagináveis de fraudar o seu semelhante. Também nenhum outro gênero animal mata com tamanha avidez: o homem, não raro, mata sem necessidade, sem motivo; e, pior, mata não só seres que julga inferiores, mas também seres de gênese biológica semelhante à sua - seus próprios irmãos em espécie. Sim, muitos foram dentre o gênero humano que se esmeraram em construir artefatos para matar com maior eficácia, para eliminar um número cada vez maior de vítimas - e se regozijar com isso, e se sentir mais poderoso com isso. Aliás, entre os homens, freqüentemente se mede o poder pelo número de vítimas que se é capaz de produzir. Felizmente, por um lado, e, infelizmente, por outro, só o homem fabricou e lançou uma bomba como a atômica, aniquilando, em poucos segundos, centenas de milhares de seres de sua mesma espécie; só o homem se orgulha de ter construído - e utilizado - "a mãe de todas as bombas"; e ao ver a destruição resultante se sentiu detentor de super poderes, e creu ter ali cumprido a sua missão...
Não raro, parece estar ficando cada vez mais distante a compreensão de que dependemos do outro para evoluir. Senão, imaginemos o planeta Terra inteiramente desabitado: que valor teriam as jazidas de petróleo, de ouro, de diamantes etc.; que valor teriam as vastas extensões de terra? Imaginemos, agora, uma outra situação: a de um único ser humano habitando solitariamente a terra: ainda que se tratasse de um egoísta, um invejoso, um arrogante - a quem poderia ele se julgar melhor, de quem desejaria os bens, contra quem oporia a sua pretensa superioridade? Mesmo fosse ele imortal, se isolado vivesse, a sua evolução seria limitada, porque é vivendo em sociedade que o homem molda o seu caráter, desenvolve as suas habilidades, descobre as suas preferências, experimenta as mais variadas e contraditórias emoções, se surpreende com reações insuspeitadas, como heroísmo - ou covardia -, que desenvolve as boas e más qualidades: a da paciência, por exemplo, complexa por excelência, só pode ser desenvolvida e testada no convívio com outros homens - pois é muito fácil ser paciente, sozinho, no cume de um longíquo monte; difícil, para muitos - dificílimo -, é ser paciente num trânsito caótico, por exemplo. Por outro lado, a desonestidade não se revelaria se o homem vivesse solitariamente.
Infelizmente, é a nossa excessiva beligerância, o nosso apego extremado aos bens materiais, o nosso arraigado egoísmo por acumulá-los - e, principalmente, a nossa inveja, esse desejo violento de possuir os bens alheios, raríssimamente confessado - que faz surgir em nossa sociedade problemas que, em outras, ou inexistem, ou existem em escala muitíssimo reduzida. Sim, sabemos que nas várias sociedades animais existem disputas por poder, por demarcação de território, por parceiras para acasalamento, por comida etc. Mas não com a gravidade, com a escalada verificada entre os humanos.
Somos seres eminentemente sociais, e viver em sociedade tem sido crucial para todo o gênero, até porque o homem ao nascer é o mais indefeso dos animais, necessitando, por um período longo, se comparado aos outros seres, de muitos cuidados e proteção para que possa sobreviver. Mas a nossa convivência tem sido bastante marcada por graves conflitos, que clamam por solução.
Naturalmente, o estudo das personalidades que marcaram a história humana, nos dá exemplos, à saciedade, de que se há homens vis, também há os de nobres sentimentos; se há os eternos trogloditas, há os que, na vanguarda, em todos os séculos, trazem verdadeiro progresso para toda a humanidade. Destarte, exatamente por ser o homem capaz de ações extremadas - seja de impiedade, seja de misericórdia; por ser ele capaz de desenvolver idéias complexas, tanto para o bem quanto para o mal; exatamente por existir personalidades que se antagonizam - egoístas e altruístas, por exemplo - que, desde tempos remotos, o homem, esse ser pensante, vem desenvolvendo várias formas de, senão extinguir os conflitos, pelo menos diminuir a sua ocorrência ou dar-lhes uma solução que pacifique as relações sociais. As tentativas são muitas, seja através das normas da religião, da moral - seja através do Direito.
Não há discutir que o objetivo maior - primeiro e último - do Direito é o ser humano. Não seria exagerado afirmar mesmo que o homem poderia viver sem o Direito, mas o Direito jamais teria razão de existir sem o homem. Sim, pois se deve haver defesa aos bens patrimoniais é porque a um ser humano eles pertencem, visto que se a ninguém pertencessem, relegados ao abandono ficariam.
A existência do Direito depende indissociavelmente do homem. Conseqüentemente, é à proteção deste que deve sempre visar, seja no que concerne à sua existência física - compreendida aí a defesa de seu corpo, de sua liberdade, de sua integridade psíquica, de sua honra, de sua crença, de sua criatividade, de seu patrimônio; seja relativamente à sua existência ideal - que abrangeria a defesa do nascituro, e também daquele que expressou sua última vontade em testamento. Ou seja, para justificar a sua existência, o Direito deve, cada vez mais, buscar proteger, amparar o homem, numa amplitude mesmo metafísica - pois buscando a essência do ser mais ligado a ele estará e mais diretamente atenderá as suas necessidades.
Mas para atingirmos tal desideratum, urge que evoluamos, individual e coletivamente.
Evoluir é preciso, mas a evolução do universo de cada ser humano se dá na inter-relação com o universo de outro ser humano. A nossa evolução depende desse contato com a diversidade do outro. E é por essa diversidade que o novo nos é trazido pelo outro - que é nosso semelhante. E aí está o que é mais maravilhoso em toda a Criação: o outro é de nós diverso, mas é também nosso semelhante. Somos, assim,ao mesmo tempo, tão diferentes - mas tão iguais.
E é exatamente ao admitir essa igualdade, que o homem começa a admitir ao outro direitos que quer para si próprio. E, ao entender que os direitos reconhecidos ao outro beneficiariam também a ele mesmo, o homem começou a desenvolver a idéia dos direitos humanos, dos quais se originam os direitos da personalidade.

3.0. A PESSOA: UMA VISÃO HISTÓRICO-FILOSÓFICA
A verdade nos liberta, enquanto a mentira nos aprisiona.
Se as pessoas não convivessem em sociedade, nenhum ordenamento jurídico teria razão de existir. Pois só pode haver Direito onde houver relações entre pessoas. As pessoas, que constituem a sociedade humana, são, pois, a causa primeira e última do Direito.
O pensamento filosófico tem influenciado e ampliado a visão jurídica sobre os seres humanos, auxiliando o Direito a melhor entender e atender as necessidades destes.
Vejamos algumas das visões filosóficas das pessoas em distintas épocas.
Os ensinamentos de Jesus se diferenciaram do judaísmo e de todas as demais religiões que lhe eram contemporâneas, por trazer uma mensagem universal: “Não há judeu, nem grego, nem escravo, nem homem livre, nem homem, nem mulher: todos sois um no Cristo Jesus” (Epístola aos gálatas, cap. 3, 28). Ou seja, todas as diferenciações e discriminações sofridas pelos seres humanos são ditadas pela ignorância humana, não encontrando respaldo nas imutáveis leis divinas.
Mas a tradição cultural ocidental que nos orienta até hoje é resultado da síntese entre a religião judaica, os ensinamentos contidos nas Sagradas Escrituras e a cultura grega. Sim, é dentro do contexto político e cultural oferecido pelo helenismo, que houve a aproximação entre a filosofia grega e a cultura judaica, tornando possível o surgimento e posterior desenvolvimento da religião e filosofia cristãs.
As primeiras iniciativas de aproximação entre o judaísmo e a filosofia grega se deram na Alexandria do séc.I a.C., ambiente poliglota, onde havia grande tolerância religiosa e um sincretismo característico da cultura grego-romana. Lá conviviam e se integravam culturas várias, a saber: a egípcia, da própria região; a grega, de seus fundadores; a judaica, trazida pelos judeus que lá viviam em numerosa comunidade; e a romana, dos recentes conquistadores do Egito.
O cristianismo, ao longo do séc. I, foi sendo difundido progressivamente. Inicia-se a a elaboração e o desenvolvimento da síntese entre o platonismo e os ensinamentos contidos no Novo Testamento. E os primeiros importantes representantes dessa nascente filosofia cristã pertenciam à escola neoplatônica cristã de Alexandria.
Após o final do helenismo (sécs. IV-V), tem início um longo período, de aproximadamente dez séculos, dominado pela filosofia medieval. Esta, em verdade, tem o seu período mais produtivo e importante entre os séculos XII e XIV, quando surge e se desenvolve a escolástica.
Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona, considerado o último dos antigos filósofos e o primeiro dos modernos, foi sem dúvida o arquiteto do projeto intelectual da Igreja Católica. Sua obra, criativa e original, norteou os rumos eleitos pelo pensamento medieval dos primeiros séculos. Para ele, o homem, mutável, falível e destrutível, tinha, entretanto, uma centelha divina, pois fora feito à imagem e semelhança de Deus.
O pensamento escolástico, tentando conciliar os dogmas da Igreja Católica Romana com as doutrinas filosóficas clássicas (platonismo, aristotelismo), definiu a pessoa como uma substância individual, que existe como um todo indivisível e dotado de razão.
Durante a era medieval, o tema fora a miséria do homem (miseria hominis). Este era visto como um ser caído, réprobo miserável, condenado à danação eterna, por ser herdeiro da mácula do pecado original, cometido por Adão, seu ancestral.
Mas se no período medieval, com a escolástica, tivemos uma visão de mundo fortemente hierárquica, estando a filosofia a serviço da teologia e da problemática religiosa, posteriormente, no renascimento, talvez o traço mais característico seja o humanismo.
O renascimento vai buscar no filósofo grego da sofística, Protágoras, o lema do humanismo: “o homem é a medida de todas as coisas”. Valoriza-se o interesse pelo homem considerado em si mesmo.
É nesse contexto que, em tratados de caráter ético, renova-se o tema - dignitas hominis - da dignidade do homem. Neles, o homem é visto como âmago da Criação, valoriza-se a sua liberdade e lhe é reconhecida uma dignidade inerente à sua própria natureza enquanto ser humano.
O homem seria um microcosmo a reproduzir, em si mesmo, todas as propriedades do macrocosmo ou universo. A sua essência, ao contrário de já estar pronta e acabada, estaria sempre em autoconstrução.
Diferente da visão moderna, que vê o universo como uma simples matéria inanimada, na concepção do humanismo renascentista, ele, a seu modo, é um organismo vivo e sensível.
Com o fim do Renascimento, inicia-se o declínio do humanismo. Com o nascimento da ciência experimental e o desenvolvimento da filosofia racionalista e mecanicista, o homem passa a ser visto como um fenômeno puramente natural.
O pensamento moderno é inaugurado, de forma mais acabada, por René Descartes (1596-1650). Com ele, tem início o racionalismo (doutrina que recebe esse nome por privilegiar a razão, considerada o fundamento de todo o conhecimento possível). No ínício do seu Discurso do método, Descartes nos diz que a razão (ou bom senso), que está presente natural e igualmente em todos os homens, é o que capacita o indivíduo a “bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso”.
Mas, ao revés dos antigos pensadores, que partiam da certeza, Descartes parte da dúvida metódica, pondo em questão todas as supostas certezas dos antigos pensadores. Descobre-se o subjetivismo, através do qual Descartes buscava no indivíduo, no sujeito pensante (“Penso, logo existo”) a fonte do conhecimento.
Segundo Immanuel Kant, só o ser dotado de racionalidade, precipuamente o homem, tem valor absoluto, porquanto - a pessoa - existe como fim em si mesmo. Contrapondo-se ao homem, teríamos todo ser irracional, chamado coisa. Esta, por existir como meio, tem valor relativo, atribuído arbitrariamente, segundo as necessidades deste ou daquele ser racional.
Essa diferenciação leva Kant a seguinte assertiva: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na sua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim, e nunca simplesmente como meio”. Poderíamos assim interpretar tal assertiva: qualquer pessoa ao agir deve fazê-lo com benevolência, clemência, compaixão - bondade - vendo tanto a si mesma quanto a outrem, jamais como recurso para atingir um objetivo, mas - sempre e simultaneamente - como o próprio objetivo, alvo, meta dessa ação. É nesse valor absoluto que tem o ser humano que se encontra a sua dignidade. Dela jamais deve ele se apartar, jamais deve dela abrir mão. E, ao respeitar a dignidade de outrem, estará ele confirmando a sua própria dignidade.
A figura dominante do pensamento pós-kantiano é Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Em 1820, Hegel escreveu: “De modo nenhum podemos renunciar ao pensamento: é o que nos distingue do animal; na sensibilidade, na cognição e conhecimento, no instinto e na vontade, enquanto humanos, há pensamento.”
Sobre a personalidade, escreveu Hegel que ela só começa “quando o sujeito tem consciência de si, não como um eu simplesmente concreto e de qualquer maneira dominado, mas sim de um eu puramente abstrato e no qual toda limitação e valor concretos são negados e invalidados”. Para Hegel é a personalidade que “principalmente contém a capacidade do direito e constitui o fundamento (ele mesmo abstrato) do direito abstrato, por conseguinte formal. O imperativo do direito é, portanto: sê uma pessoa e respeita os outros como pessoas”
“Tal é a condição do homem na natureza: por um lado é por ela abrangido e faz parte dela; por outro lado, como sujeito pensante, reflete-se na natureza, resume-a toda em si mesmo, coloca-a e compreende-a como sua idéia. Deste supremo ponto de vista, a realidade não é já qualquer coisa de extrínseco, mas é propriamente, uma função ou representação do pensamento. (Lições de Filosofia do Direito, Giorgio Del Vecchio, p.564-565)

3.1. APROFUNDANDO O CONCEITO DE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
3.1.1. DUAS CONCEPÇÕES DIVERSAS DA PESSOA HUMANA
Já vimos que na filosofia a expressão “dignidade da pessoa humana” já fora utilizada, mas no mundo jurídico isso é historicamente recente. Considerado em si mesmo esse conceito é juridicamente indeterminado e de relevancia esmaecida. Mas, inserido em lei - principalmente na Lei da leis - assume status de princípio jurídico basilar, norteador de todo o ordenamento legal brasileiro.
E é assim aureolada, como princípio fundamental, que aquela expressão - dignidade da pessoa humana - comparece no art. 1º, III, da nossa Carta Magna. Nela o conceito da dignidade humana, além de normativo, é axiológico - pois expressa o valor da pessoa, do ser humano. O valor é a significância, é a projeção que um bem possa ter para alguém. Aplicando-se ao ser humano, ele mesmo é o bem, e a dignidade, é a sua significância, a sua projeção - o seu valor.
Dissemos que a dignidade, ao ser inserida na Constituição Federal, fora alçada a princípio jurídico, e como tal tornara-se norteadora de todo o Direito pátrio. Como princípio jurídico, mais do que regra, ela é norma jurídica, exigindo não apenas ser interpretada, mas, sobretudo, ser concretizada, tornada real no dia-a-dia humano.
E é exatamente no plano da interpretação e da concretização que, infelizmente, podemos constatar que, se houve um consagrador acordo no que tange as palavras que formam a expressão - dignidade da pessoa humana - , o mesmo não se verifica quanto ao que essas palavras realmente significam.
Sobre pessoa humana duas divergentes concepções existem. A ainda dominante, concebida pelo racionalismo iluminista, é a concepção insular, que, segundo alguns de seus defensores, vê o homem como razão e vontade, ou como autoconsciência, para outros. Ontologicamente, isto é, no que concerne ao ser enquanto ser, esta concepção é dualista, pois nela homem e natureza estão em níveis diversos - sendo o homem sujeito, e a natureza objeto - o que impossibilita o seu encontro. O homem é visto como diferente e superior a tudo quanto existe na natureza, pois só ele é racional e capaz de querer, só ele vê e pensa a natureza. Valor absoluto só o homem possui, enquanto a natureza, em si mesma, é desprovida de valor, sendo-lhe este meramente relativo. Como conseqüência, a dignidade humana é entendida, segundo esta concepção, como autonomia individual, ou autodeterminação.
A outra concepção vê o homem como ser que completa e se completa com a natureza; que encontra a sua especialidade, não na razão e na vontade, pois que essas várias outras espécies animais as possuem; nem na auto consciência, visto que pelo menos os chimpazés já demonstraram tê-la; mas na capacidade do homem sair de si, reconhecer o outro como seu igual, fazer uso da linguagem escrita e oral para diálogos e, primordialmente, amar, isto é, entregar-se espiritualmente a outrem. Esta forma de conceber a pessoa é condizente com uma nova ética, e nos leva a entender a dignidade como qualidade do ser vivo, dialogador e que se deixa atrair pela transcendência. Ao contrário da concepção anterior, esta é monista, pois concebe o homem e natureza como um conjunto compacto e conexo. Aqui o homem não é o único ser inteligente e capaz de querer, nem o único dotado de autoconsciência: ele é apenas o último de uma cadeia crescente de complexidade. Destarte, a natureza, considerada em toda a sua totalidade é um bem, e a vida - o seu valor.
Tais concepções, vistas antropologicamente, mostram outras diferenças. Enquanto, para a concepção insular, o homem é uma mente que tem um corpo, sendo este considerado como uma máquina a qual a mente possui e comanda; a segunda concepção entende que o homem é todo corpo e que a mente também é corpo.
Assim, percebe-se que a concepção insular, filha do racionalismo iluminista europeu, privilegiou, desvendou (e aqui podemos fazer uma analogia com o vestuário europeu da época) somente a cabeça (razão) e as mãos (ação, ou vontade), ocultando, desconsiderando - ignorando - a essência da natureza física do homem (simbolizada pelo resto do corpo humano). Esse ignorar do valor da natureza, essa omissão do que é realmente característico, específico do homem, leva a um subjetivismo e a um caráter cerrado, sombrio, que afasta, que isola e que também aprisiona e reduz as infinitas possibilidades que a mente e o corpo disponibilizam ao homem. Como já o afirmamos antes, o homem isolado não teria meios de desenvolver e manifestar toda a sua idiossincrasia, toda a sua maneira de ver, sentir, reagir à ação de agentes externos. É precisamente no seu inter-relacionamento com o próximo - o outro -, no seu diálogo com ele, na sua capacidade para amar além do físico, transcendendo a este e alcançando a essência do ser amado, que o homem descobre o seu universo interior e ganha o universo exterior.
Em verdade, todo o universo biológico existente no planeta Terra evolui. Essa evolução pode ser imperceptível durante uma vida humana, pois vem ocorrendo ao longo de bilhões de anos. Mas ela se dá de modo constante, sem quebra de continuidade e revelando um aumento de complexidade progressiva. O avanço do conhecimento científico em várias áreas tem comprovado isso. A biologia, ao explicar a evolução das espécies; a etologia, ao estudar o comportamento dos animais na natureza; e as contínuas descobertas que vêm sendo feitas sobre o cérebro humano, tornaram insuficiente, insatisfatória a concepção insular da pessoa. Hoje, as pesquisas no ramo da paleontologia, por exemplo, levam à certeza de que vários tipos antropóides, hominóides, hominídeos, chegando-se às muitas espécies ancestrais do gênero homo (homo habilis, homo erectus, homo neanderthalensis, homo sapiens arcaico, etc.) se sucederam, até chegarmos ao moderno homo sapiens. Esses estudos mostram o quão distanciada da realidade estava a conclusão dos filósofos iluministas de que tão-somente o homem é dotado de razão e vontade.
O australopithecus, a mais antiga espécie de hominídeo, que existiu no sul da África há cerca de três milhões de anos, tinha algumas das características semelhantes ao homem moderno. Foi ele o criador do primeiro instrumento.
Passando a andar sobre dois pés, um dos nossos ancestrais descobriu suas mãos livres para usar e fazer objetos. E esse trabalho com as mãos sofisticou a sua capacidade de manipular, permitindo o uso de partes do cérebro que, até então, estavam adormecidas. Isso estimulou o crescimento do seu cérebro e foi desenvolvendo a sua capacidade intelectual.
Observa-se que a evolução do homem foi se dando num crescendo, acompanhando, se adaptando e se beneficiando das transformações ocorridas no próprio planeta. O aumento ou a queda da temperatura, secas ou inundações; assim como diferenças geográficas, como altas montanhas, planícies, florestas equatoriais, planaltos áridos, áreas costeiras foram determinantes na evolução do gênero humano. Do bipedismo, à utilização e confecção de instrumentos de pedra, que propiciou o aumento do seu cérebro; da descoberta do fogo, ao desenvolvimento da linguagem (com o homo habilis, surge a a “protolinguagem”, ou linguagem rudimentar, primitiva; com o homo sapiens, desenvolve-se a linguagem como a definimos); passando pelos cuidados especiais e cultuação dispensados aos mortos, decorreram, necessariamente, alguns milhares de anos. No decorrer dessas fases evolucionárias, numa determinada linha de primatas, verifica-se o progressivo aumento de suas faculdades existenciais (razão, vontade, autoconciência), colocando-os em níveis cada vez mais elevados de complexidade. Conseqüentemente, não há sustentar uma idéia de que aquelas faculdades já teriam surgido no homem tais como as identificamos hoje. Elas são, pois, resultado de todo um processo evolucionário constante, contínuo e conseqüente.
Paralelamente, no âmbito da psicologia, desenvolveu-se uma ciência - a etologia - que se dedica a estudar os hábitos dos animais e a sua acomodação às condições do ambiente comportamento. Através da pura e simples observação, descobre-se que os animais têm sensações semelhantes às nossas, sentem afeto pelos filhotes, pelos parceiros e também por outros seres. Descobre-se também a surpreendente inteligência e versatilidade de muitos deles. Comprova-se o que qualquer bom observador já sabia: que quando bem alimentados animais temidos como cobras, arraias, tubarões são tão dóceis como qualquer animal de estimação, sendo incapazes de matar por prazer - como o ser humano é.
Hoje, quem estuda ou observa as mais diferentes espécies de animais, não pode, absolutamente, concordar com Descartes, quando afirma que os animais são “máquinas que se movem”, e que, sendo a alma que pensa, os animais, por serem dela desprovidos, não pensam nem têm vontade. Igualmente, discordarão de Kant, quando os reduz a “coisas”. A propósito, o BGB, que teve seu texto alterado em 1990, seguindo o Código Civil austríaco, atualmente dispõe em seu parágrafo 90: “Os animais não são coisas. Os animais são tutelados por lei específica. Se nada estiver previsto, aplicam-se as disposições válidas para as coisas".
O avanço verificado no campo das ciências cognitivas, têm propiciado um estudo cada vez mais aprofundado das conseqüências de lesões cerebrais decorrentes de acidentes.
A propósito, o neurologista português, Antônio R. Damásio, chefe do departamento de neurologia da Universidade de Iowa, em seu livro, O Erro de Descartes, constrói, com base no estudo do famoso caso de Phineas P. Gage (que sobreviveu a uma gravíssima lesão cerebral causada por barra de ferro, em 1848) e em outros mais específicos de seus pacientes, a hipótese dos marcadores-somáticos, áreas específicas do cérebro, onde os sentimentos e emoções registram aquelas sensações primárias e secundárias responsáveis pela identificação das afeições dos indivíduos pelos objetos e situações com as quais se defronta. A grosso modo, sem saber aquilo que lhe agrada ou desagrada a pessoa não pode decidir qual a atitude correta a ser tomada. E com isso, a idealização de uma razão pura cai por terra. O erro de Descartes, de Kant e todos os racionalistas não estava só em localizar a alma na glândula pineal ou num reino dos fins à parte do mundo sensível. O erro estava em pensar a capacidade cognitiva como algo independente dos sentimentos e emoções vividos pelo organismo18out.2004.
Ou seja, o certo é que as ciências cognitivas têm conseguido comprovar, com alguma segurança (seja conjugando análises químicas e estados mentais; seja através da ressonância magnética, ou da eletroencefalografia; ou da utilização de tomógrafos por emissão de pósitrons, mais conhecidos por PET (positron emmission tomography), que “os processos de sensações, ordenação das sensações, representações e impressões internas (pensamentos) são físicos ou no mínimo têm total correspondência física”.
Destarte, urge que o conceito de pessoa humana não mais se fundamente tão-somente na autoconsciência, na racionalidade e na autodeterminação. Estas são qualidades que, já vimos, não são as que a distinguem de todo o universo de seres viventes no planeta. E, ainda, se tornaram insuficientes para proteger o ser humano dos novos perigos que podem advir do vertiginoso desenvolvimento dos fatos no mundo tecnológico, principalmente no ramo da biotecnologia.

3.1.1. APROFUNDANDO O CONCEITO DE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A palavra pessoa provém do latim - persona - formada pelo prefixo de superlatividade “per”, ao qual se apensou “sonare”.
Per + sonare significava para ressoar, fazer eco. Designava uma espécie de máscara que os antigos atores teatrais em Roma utilizavam durante a representação. Na máscara lâminas de metal geravam um efeito acústico que permitia a voz do ator ressoar cristalinamente nos amplos anfiteatros.
É claro que as vozes dos deuses, assim como as dos homens comuns teriam de soar distintas para que pudessem ser reconhecidas. Conseqüentemente, havia a necessidade de uma máscara para cada papel.
Com o passar do tempo, o vocábulo “persona” passou a designar o próprio papel representado pelo ator.
Como o ser humano, como um ator, desempenha vários papéis durante a sua vida, “pessoa” passou a designar o feixe de papéis desempenhados por um indivíduo. Este conjunto de papéis compõem uma unidade, e cada um dos papéis interagem e afetam uns aos outros: um mesmo indivíduo desempenha os papéis sociais de pai, filho, pagador de impostos, membro de uma categoria profissional, membro de um clube recreativo etc. E cada um desses papéis é determinado por uma série de qualidades institucionalizadas.
No direito os papéis institucionalizados adquirem contornos certos e seguros. Quando o indivíduo é capaz de exercer vários desses papéis, o direito capta-o como um conjunto de papéis institucionalizados que se interagem. Surge daí a pessoa física.
O Novo Código Civil brasileiro dedica todo um capítulo aos assim chamados direitos da personalidade. Sendo que a essa categoria de direitos o legislador se reporta pela primeira vez, isso seria conseqüência de uma mudança paradigmática do direito civil - que estaria reconhecendo a proteção da pessoa como valor máximo.
Dignidade da pessoa humana.
Mas essa pessoa assume a posição central no ordenamento jurídico apenas de forma retórica, pois a tutela que se lhe dá visa protegê-la apenas pelo que ela tem e não pelo que ela é.
Ter e ser são verbos que, na perspectiva civilista tradicional não se confundem, pois para que o ser humano tenha relevância ao sistema, para que por este seja considerado sujeito de direito - urge que tenha patrimônio.
Éra para, em pleno século XXI, estar-se convicto de que o ser humano, este ser de carne e osso, que pensa, que sofre, que sente, que se emociona, que trabalha, que respira tem valor por ele mesmo. Em verdade, só o fato de hoje estar-se ainda tentando repersonalizar o direito mostra como este petrificou-se, atrelado a heranças que, há muito, já deviam ter sido descartadas, ter sido deixadas para trás. O fato de ainda não se ter a vida - em especial a humana - como o bem mais precioso sobre a face da terra; o fato de ainda se escravizar ou exterminar centenas de milhares de seres humanos para se apropriar de “riquezas” como terra, ouro, pedras preciosas - que aí estão há bilhões de anos e por outros bilhões de anos aí permanecerão; o fato de ainda não se perceber que aquelas vidas em relação a estas “riquezas” eram extremamente efêmeras, e que jamais serão repostas; o fato de se eliminar vidas preciosas para se assegurar a continuidade do uso de agentes poluidores, que destroem a vida; o fato de não entendermos que não somos nunca donos de nada - nem do nosso corpo, pois a morte nos aparta de tudo que pensávamos possuir e deter a propriedade; tudo isso nos mostra o quão distante estamos da sabedoria, o quão distante estamos de reconhecer o sagrado valor da nossa própria vida - pois quando negamos esse valor à vida de nosso semelhante, negamos a nós mesmos, porque outrem, mais forte, surgirá, com o mesmo argumento, para escravizar-nos ou exterminar-nos.
Mas será que jamais a raça humana sairá desse estágio do ter? Será que o homem estará sempre a eleger como seu “deus” um bezerro de ouro - isto a propriedade, o ter? O fato de não se ter feito um deus de argila, ou de pedra é emblemático, pois denuncia a nossa eterna atração pelos falsos valores - pelo que é material e não pelo espírito; pelo que é morto e não pelo que tem vida. Já admoestava Sócrates: “Não tenho outra ocupação senão a de vos persuadir a todos, tanto velhos como novos, de que cuideis menos dos vossos corpos e dos vossos bens do que da perfeição das vossas almas, e de vos dizer que a virtude não provém da riqueza, mas sim que é a virtude que traz a riqueza ou qualquer outra coisa útil aos homens, quer na vida pública, quer na vida privada”.
Infelizmente valorizamos o que nós mesmos convencionamos ter um altíssimo valor, mas que ou estará sempre aí, ou prejudica o meio ambiente ou, na verdade, só possui um valor virtual, enganoso, ilegítimo, suposto, ilusório.
O que é valioso? Algo que é caro, custoso, dispendioso? E quanto custa uma vida humana? É comum a resposta ser que ela não tem preço. Só que para o pensamento que efetivamente reina há milhares de anos entre os homens, ela nada vale precisamente porque não tem preço. Ou seja, para o pensamento patrimonialista, se não é possível com a vida nada entesourar, se não é possível tão-somente com ela demonstrar poder, então a ela de nada serve, ela de nada vale.
Porém, existiria algo mais insano do que, diante da iminência de uma fortíssima explosão, um homem querer proteger uma valise com milhões de dólares com seu próprio corpo? Mas é desta forma que o homem tem procedido: dando extrema importância ao que nenhum valor tem diante de uma única vida humana.
Dinheiro, ações,? Quando as bolsas caem vertiginosamente constata-se que aquilo era só papel. Metais ditos preciosos têm valor? Só enquanto o próprio homem não for obrigado a desvalorizá-los em virtude de contigências econômicas.
Com os bens materiais é muito mais fácil e possível comprar o mal do que o bem. O bem, não raro, nos vem de forma gratuita, enquanto o mal é sempre dispendioso. Numa guerra como a que assistimos, compra-se mortes e destruições com bilhões de dólares mensais; enquanto o bem é ofertado - desinteressadamente.
Quanto custavam os ensinamentos de Sócrates? E os ensinamentos e os milagres de Jesus? Quantas barras de ouro foram necessárias para pagá-los. Quantos bilhões, trilhões foram dispendidos, na moeda da época, para comprá-los?
Nos diz Tercio Sampaio Ferraz Jr, em seu livro Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação: “Quando estamos doentes e precisamos ser operados, procuramos um médico e não um enfermeiro (o que é claro, não garante uma boa operação, ao menos confere ao conteúdo da expectativa certa establidade: problema da medicina socializada e despersonalizada)”. A expectativa que temos é que com dinheiro podemos pagar o melhor atendimento e a cura. Mas com os bens materiais você não compra a sua saúde, você não compra a sua segurança, você não compra a sua paz interior, você não compra para si mesmo o saber.
A dificuldade axiológica quanto à vida humana reside no não desenvolvimento do amor no coração do homem. E não há amor no coração do homem porque este é ignorante. Amor e ignorância são adversos: não se coadunam, não se juntam, não se reúnem, não se incorporam. Onde há a ignorância inexiste amor. Pode haver concupiscência, sexo, libidinagem, pornografia - jamais amor.
Amar é sabedoria. E o Sábio dos sábios é o próprio Amor.
E para que haja amor é primordial que haja respeito. Quem ama respeita o ser amado. Conseqüentemente, é por estar desprovido de amor que o homem - este ser ignorante - não dá a si mesmo valor, nem valoriza a vida de ninguém; não respeita a quem quer que seja pois a si mesmo não se respeita.
Sem nenhum amor e com inesgotável ignorância o homem só valoriza em sua vida as “suas” posses. É o ter prevalecendo integralmente sobre o ser. A sua própria vida nada valerá se ele se vir desprovido de tudo que ele (imagina) ter. Por conseguinte, não será à vida de quem quer que seja que ele dará importância. Pois se o que importa é o ter e não o ser, e a vida não tem preço, ela, conseqüentemente, não é importante.
Mesmo quando o ser é vendido o que é axiologicamente mensurado é a sua capacidade de trabalho, ou a sua capacidade de proporcionar prazer pois estas podem reverter em riquezas, em bens. A vida humana, em si, não é digna de nenhum apreço, nenhuma consideração, nenhuma estima.
Mas é a vida o grande milagre, o grande tesouro. É claro que afirmo isso pensando na vida de uma alma preciosa que tive o privilégio de pelo menos vislumbrar. Obviamente, quem vive com sabedoria multiplica o milagre, esplendora o tesouro. Mas de qualquer modo a dignidade da pessoa humana devia ser efetivamente respeitada pelo simples fato de que vive - pois é na vida que reside o grande prodígio, a rara riqueza.
É novidade afirmar que cada vida humana é insubstituível, que cada ser humano é único? Não. Mas será que entendemos o que é ser insubstituível, o que é ser único? Significa que eliminando-a não a podemos substituir por outra; significa que outra vida não pode ser reposta no lugar daquela, como num supermercado; que outra vida não preenche o vazio deixado por aquela, significa que nunca jamais a teremos de volta. Mas é claro que o ser ignorante, embrutecido em seus sentidos, não vislumbra diferenças, nuances, singelezas, gradações. Envolto nos véus da ignorância o homem não vislumbra o colorido da vida: só enxerga em preto e branco.
Dignidade da pessoa humana. O que significa esta expressão? O vocábulo pessoa já não recebe uma distinção redundante quando a ele apensamos o humana? Dignidade: se tem ou se é digno? Ser digno é diferente de ter dignidade? Ter dignidade é mais importante do que ser digno?
Ter dignidade parece uma idéia carregada do velho patrimonialismo, em que você pode comprar quanta dignidade os seus bens materiais permitirem. Ser digno já transmite a idéia de que ou você se esmerou para alcançá-la, ou de que ela lhe é inata.
É esta dignidade - a inata - que o Direito deve começar a respeitar, proteger e assegurar a todos os seres humanos. Todos os seres humanos são dignos, independente de sexo, raça, língua, religião, opinião política e condições pessoais e sociais. Independente de ser ou não “rei da criação”, de ser ou não o único ser racional, de ser ou não o único ser autoconsciente, o ser humano é digno tão-somente porque está dotado desse bem fascinante e admirável que é a - vida.
3.2. DIREITOS DA PERSONALIDADE: HISTÓRICO
Muitas vezes não se dá a devida importância ao estudo das origens de determinado instituto jurídico, de determinado direito, o que nos leva a uma compreensão incompleta e até mesmo incorreta das razões de sua criação e existência. Ao ignorarmos a sua trajetória através dos tempos, nem ao menos vislumbramos o quão distante ele já esteve para os nossos antepassados. Porquanto aquele direito que hoje é incontestável e totalmente assegurado nas leis, ontem, era inadmissível e veemente negado.
Ter a consciência das origens de cada direito, de cada instituto pode evitar retrocessos patrocinados pelos déspotas existentes em todas as sociedades e em todos os tempos. Pode igualmente inspirar a sociedade, ao ver um direito que lhe é hoje assegurado sob perigo de extinção, a lutar pela sua permanência.
Se hoje o Direito consagra como princípio norteador de todo o nosso ordenamento jurídico a dignidade da pessoa humana, um longo caminho precisou ser trilhado, século após século. No mundo ocidental podemos afirmar que esse caminho começou a ser melhor vislumbrado e trilhado, ao longo dos dois últimos milênios, com os ensinamentos de Jesus. Sim, indubitavelmente, esses ensinamentos tiveram um papel decisivo - crucial - na construção da teoria dos direitos da personalidade.
Se modernamente vige o princípio geral de que todo homem é pessoa, e, portanto, sujeito de direitos; e de que todas as pessoas devem ser tratadas com igualdade perante a lei; na antiguidade, consideremos a civilização grega ou a romana, não encontramos a personalidade como objeto das reflexões filósoficas gregas, nem tampouco encontraremos uma teoria geral da pessoa no direito romano.
Se é fato que os primeiros doutrinadores que se dedicaram a estruturar o conceito de pessoa, procuraram buscar inspiração em certas realidades encontradas no mundo greco-romano, também é verdade que se basearam em imagens idealizadas e distanciadas da realidade vivida naqueles primórdios tempos. A rigor, no que concerne à concepção de pessoa, não há falar em continuidade do que haveria no mundo antigo, nem mesmo de um desenvolvimento gradual que uniria aquele mundo ao atual. Tratam-se de mundos onde as experiências vividas são distintas, como distintos são igualmente conceitos como pertencimento, participação, direitos.
A civilização grega, seja em seus tempos primevos, como nos florescentes tempos de democracia, praticamente desconhecia a subjetividade do indivíduo. O interesse pelo ser humano, exceto como parte da natureza, era pequeno. A própria palavra - pessoa - na acepção que modernamente possui, não encontra sentido semelhante no pensamento grego. Prósopon, vocábulo cujo significado mais se assemelha, designava as máscaras utilizadas pelos atores para que pudessem desempenhar o seu papel no teatro grego. Mais tarde, prósopon passou a significar o próprio papel que o ator desempenhava numa peça. Deriva daí o sentido que veio a ter pessoa - o da representação de cada indivíduo no mundo jurídico - sem contudo vir a representar o homem em toda a intensidade, em todo o esplendor axiológico moral e ético.
Dissemos que, da civilização grega, a idéia de subjetividade não era de todo desconhecida. Na idade de ouro da civilização ateniense, no famoso “século de Péricles”, vemos florescer dois tipos de humanismo: o sofista e o socrático. Mas, enquanto o sofista vincula-se ao ceticismo, à indiferença religiosa e ao relativismo epistemilógico, o humanismo socrático centraliza-se no preceito - “conhece-te a ti mesmo”.
Um dos mais influentes sofistas, Protágoras, afirma, em seu principal e mais conhecido fragmento que “o homem é a medida de todas as coisas, das que são como são e das que não são como não são”. Assim foram sintetizadas duas das idéias centrais do sofismo: o humanismo e o relativismo. A progressiva valorização da “medida humana”, iniciada séculos antes, trouxera como fruto o próprio sistema democrático. Neste o cidadão ateniense tinha como experiência diária não só aquela “medida humana”, pois era o homem que fazia ou alterava as leis; mas também o relativismo, pois a atividade legislativa era resultado do confronto ou do acordo entre interesses e pontos de vista diferentes.
Para os sofistas o conhecimento dependia da experiência concreta que o homem tivesse do real, resultando a verdade apenas das humanas opiniões (doxas) sobre as coisas e do consenso formado em torno disso.
Mestres de eloqüência e da arte de persuasão, os sofistas visavam com sua atividade pedagógica facilitar a ascensão na vida política de quem já dispunha de poder econômico, pois só estes podiam pagar suas caras lições. Como conseqüência política, os atenienses tinham decisões na Assembléia tomadas com base numa habilidade de retórica que, muitas vezes, não se encontrava aliada à sabedoria ou à virtude
Contemporâneo dos sofistas, encontramos Sócrates também deslocando a reflexão filosófica da natureza para o homem. Através de diálogos, ele busca ensinar uma Ética que regula as condutas do homem de bem, guiando-o no caminho de sua auto-construção.
É com Sócrates que a Ética, propriamente dita, começa. Alguns autores afirmam que os sofistas lhe deram um importante estímulo. Mas é o seu caráter e a profundidade de sua consciência moral que o diferenciam de qualquer outro.
Sócrates leva a filosofia para a praça pública - a ágora - local onde os atenienses se reuniam, comerciavam; onde, no período democrático, realizavam-se as assembléias populares; onde também realizavam-se cerimonias religiosas e administrava-se a justiça. Realizando seus diálogos na ágora, Sócrates transforma-a no grande anfiteatro para a busca da verdade interior.
Para Sócrates, a virtude (aretê) é conhecimento - episteme (ciência) - que não pode ser ensinado, pois não visa a obtenção de prestígio social ou de riquezas materiais: seu objetivo é o conhecer-se a si mesmo, mantendo a autoconsciência desperta e em vigília constante - é o desbravar da própria subjetividade.
Ao contrário dos sofistas, Sócrates exerceu a sua atividade pedagógica de forma gratuita. Tinha o seu daimom (espécie de voz interior) a guiá-lo na busca daqueles que ainda possuissem condições psicológicas favoráveis para serem submetidos à ironia e à maiêutica. A ironia era o momento dentro do diálogo em que Sócrates, reafirmando só saber que nada sabia, habilmente propunha questões ao seu interlocutor de modo a fazer com que este reconhecesse sua total ignorância sobre aquilo que julgava saber, sobre aquele assunto que julgava dominar. Destarte, o interlocutor de Sócrates percebe que a sua doxa (opinião) é, tão-somente, uma repetição sem inteligência de fórmulas ou chavões aclamados, mas desprovido, para ele mesmo, de sentido. E se as palavras tornavam-se, assim, um terreno instável, refletindo opinião relativa e insegura, era porque quem as pronunciava não tinha delas a compreensão, o entendimento integral de seu significado.
Tendo o seu interlocutor-discípulo reconhecido a sua própria ignorância, Sócrates ajuda-o, na fase chamada maiêutica (ou de parturição das idéias), a dar à luz idéias próprias. Porque, ao conceber suas próprias idéias, o homem vai ao encontro de si mesmo, faz de si próprio o seu ponto de partida. Tenta ser ele mesmo sua própria alma. A recuperação da saúde da sua própria alma se dá através do conhecimento de si mesma. O interlocutor-paciente é levado, então, por Sócrates a pensar para se curar. Pensar - tanto no sentido de se combinar no espírito pensamentos ou idéias; refletir, raciocinar; quanto no sentido de tratar, limpar, curar - a alma.
Sócrates, ao se deixar guiar pelo seu daimom no processo de seleção de seus interlocutores, abria, a qualquer um, independente de fatores sociais e econômicos, a sua atividade pedagógica - o que a democratizava.
Platão, no diálogo Ménon, descreve Sócrates submetendo um escravo à maiêutica de uma intrincada questão matemática. Ao demonstrar - publicamente - que o homem, mesmo quando subjulgado por distâncias sociais e políticas, se submetido a um processo educativo adequado, é capaz de compreender e perscrutar complexas questões científicas, Sócrates prova, que um escravo era, em sua alma, pelo menos igual a qualquer cidadão e mostra que, de direito, todos os indivíduos intrinsecamente se assemelham.
Para a democracia ateniense, que recusava direito à cidadania às mulheres, aos estrangeiros e aos escravos - o que atingia a maioria da população de Atenas - o pedagogo Sócrates passa a representar uma denúncia de suas limitações e um perigo para os interesses daquela minoria detentora do poder.
Assim sendo considerado, Sócrates, em 399 a.C. sofre, por alguns dos cidadãos atenienses grave acusação: não reconhecer os deuses do Estado, introduzir novas divindades e corromper a juventude. Durante o seu julgamento, Sócrates demonstra publicamente a inconsistência de tal acusação, que tem causa inegavelmente política, pois o que a determina, em verdade, são as críticas ao que ele acreditou ser um desvirtuamento da democracia; são as discussões e os questionamentos, feitos durante os diálogos de Sócrates, dos valores morais e religiosos que orientavam não só a conduta dos cidadãos, como alicerçavam as instituições políticas de Atenas.
Embora a filosofia tenha surgido na Grécia exatamente por ter o pensamento mítico perdido o seu poder explicativo; por terem os mitos gregos, que se acreditava globais, absolutos, se mostrado relativos quando confrontados com os de diferentes povos - a ruptura com o modo mítico de pensar não se faz de forma abrupta nem definitiva. Crenças, superstições, fantasias, sobrevivem até hoje no imaginário dos povos. Preconceitos perduram por séculos, e um deles é o de que aquele que se propõe a nos ajudar a nos libertar desses falsos valores, desses falsos conceitos tenha de se declarar culpado e pedir desculpas por isso. Sócrates, em seu julgamento, frustra essa expectativa: ironiza seus acusadores, manifesta-se com altaneira independência de espírito, sem bajular ou tentar captar a misericórdia dos que os julgavam - o que é interpretado como arrogância. Mas sua linguagem é serena; e se objetivamente não se defende é porque não reconhece em si mesmo nenhuma culpa. Por isso mesmo, ao ser convidado a fixar sua pena, como era a praxe após a condenação, Sócrates impede que os injustos, que o acusam falsamente de atividades nocivas, tentem passar para a história como magnânimos, ao consentir na continuação de sua existência. Nem exílio, nem multa ou qualquer outra pena moderada: propõe ser sustentado no Pritaneu, o que equivaleria não só ao reconhecimento de sua inocência, como o de ser benéfica e regeneradora a sua atividade pedagógica. Encurralando os juízes entre sentenciá-lo à morte ou recompensá-lo como herói ou benemérito da cidade, Sócrates oferece uma derradeira lição: a de que o caminho para a verdade e a justiça exige humildade e coragem: humildade para reconhecer os erros e coragem para corrigí-los. Mas alguns tipos de ignorância raramente se apartam da prepotência, da arrogância e da covardia. Deste modo, tornou-se impossível para aqueles juízes admitir ser inocente quem realmente o era.
Hoje, a expressão “para todos” é o que define para nós a democracia. Pressupõe-se que os poderes e os direitos serão para todos.
Entretanto, a democracia dos gregos, não obstante já contivesse essa semente dentro das buscas filosóficas daquele tempo, não nasceu com a divisão dos poderes e com o compartilhamento dos direitos para todos.
A democracia na Grécia foi um trabalho do cidadão, um ser político, que podia participar da polis. Mas essa participação só se tornava possível se fossem observados certos atributos e características. Esses atributos e características eram vigiados por meio de registros e conferidos com rigor.
Portanto, a cidadania em Atenas era um privilégio, guardado com zelo, que começava a se adquirir pelo nascimento: somente aos filhos de - pai e mãe - atenienses se reservava o direito de serem cidadãos. Mas não bastava a ascendência e ter nascido na cidade de Atenas: era preciso que fosse homem. E aí começava o rol das exclusões: para ser cidadão urgia não ter ascendência estrangeira, não ser mulher, não ser criança, não ser louco, não ser estrangeiro, não ser escravo. Enfim, não ser nada de diferente, nada de estranho.
O fechamento da cidade-estado trazia como necessária conseqüência a definição do outro e a sua exclusão. Como conseqüência de um padrão muito bem estabelecido do que era cidadão, a população de Atenas foi dividida em três classes: cidadãos, metecos e escravos. Os estrangeiros e seus descendentes formavam a classe dos metecos que, como os escravos, eram excluídos da vida política ateniense. O resultado é que muitos dos habitantes do próprio território que constituía a cidade-estado de Atenas vieram a formar uma vasta população completamente excluída - não-cidadã. “O censo de Demétrio de Falera dá a Atenas 20.000 cidadãos, 10.000 metecos e 400.000 escravos” . Em resumo: todos os cidadãos atenienses tinham direitos políticos, mas nem todos os habitantes - a grande maioria - eram cidadãos.
Não ser cidadão era não ser um homem pleno e livre, era não possuir direitos e garantias sobre sua própria individualidade e seus bens; era não participar dos ritos, dos costumes, das regras, das festividades, das crenças e das relações pessoais.
Analisar as condições em que se detinha o status de cidadão nos pareceu importante porque o termo - cidadão -, embora não tenha significado coincidente com o de pessoa - guarda com este uma proximidade bem maior do que com outros, como ser humano, homem, indivíduo. E a história da conquista paulatina da cidadania, os direitos e os valores que a ela foram sendo agregados, a sua ampliação para um número cada vez maior de indivíduos nas sociedades, repercute de alguma forma numa melhor conceituação do termo pessoa, na sua universalização axiológica.
Como já o afirmamos, no direito romano, de onde deriva o nosso direito, não houve desenvolvimento de uma teoria geral da pessoa, pois o que importava era o status, isto é, a situação jurídica que determinado homem ocupava na civitas e na familia. E dependendo da variação desse status, o homem seria livre ou escravo, cidadão romano, latino ou estrangeiro, sui iuris (direito próprio) ou alieni iuris (de direito alheio).
No Direito romano homem e pessoa eram noções que se distinguiam, estando a noção de homem ligada à questão biológica e a de pessoa associada à idéia da máscara de teatro - pelos gregos denominada prosópon, prosopeion, traduzido entre os romanos no vocábulo persona. que era usada pelos atores de teatro para identificar os personagens que representavam e ampliar as suas vozes. Hoje é quase óbvia a analogia que se pode fazer: o termo pessoa tomou um sentido passando a significar o papel que o homem representa na sociedade e a voz a aptidão para adquirir direitos.
Cunhou-se, a partir daí, o seguinte conceito: “persona est homo consideratus cum suo statu” (a pessoa é o homem considerado com o seu status).
No Digesto, a parte que tratava das pessoas era intitulada - de statu hominum - isto é, do status dos homens.
Embora Gaio falasse em persona servilis e persona servi em verdade o escravo era pelo direito romano considerado apenas como homo, não possuindo nenhum status. Ele era encarado como um bem, algo que o seu senhor tinha a propriedade. Contudo, não obstante o escravo ser equiparado a coisa, havia um consenso geral de que ele não deveria ser tratado de forma desumana; e embora ao escravo não se atribuísse personalidade, isto é, capacidade de adquirir direitos, ele possuía capacidade de fato, o que lhe permitia adquirir bens em nome de seu senhor (dominus), e até de possuir determinados bens (pecúlios), pois o ius naturale lhe era garantido.
Três eram as categorias de status: a) status libertatis, quando o homem era considerado conforme a liberdade; b) status civitatis, quando era considerado segundo a sua localização em relação à civitas; c)status familiae, quando a análise se referia à sua posição dentro da família.
Embora a rigidez da sociedade romana, o status não era imutável. Assim, durante as guerras, os maiores personagens poderiam ser reduzidos à escravidão. Também os pobres podiam ter modificada a sua posição - quase sempre para pior: de livre para escravo ou de plebeu para cliente.
Mas outros motivos poderiam determinar a capitis diminutio. Esta seria máxima quando ao mesmo tempo se perdia a cidadana e a liberdade; média quando se perdia a cidadania mas se conservava a liberdade; e mínima quando, conservando a cidadania e a liberdade, modificava-se a sua situação na família.
Em verdade, via-se a escravidão como tão inconteste que o humanismo da época não clamava por sua abolição: pregava-se, tão-somente, que os escravos não fossem tratados de forma desumana.
Mas, a despeito das atitudes do bom senhor, não há negar que a escravidão era - e será sempre - um instituto contrário à humanidade.
A escravidão, em verdade, é resultado de argumentos que se baseiam na visão distorcida que a ignorância sempre nos proporciona da realidade. E a ignorância, que subsidia uma descabida arrogância e soberba, continuamente tem levado à queda grandes impérios.
A sociedade romana, como, muitas outras após ela, foi incapaz de entender que a escravidão nunca deveria ter existido; foi incapaz de perceber que ela, ao menos, deveria ser abrandada. E durante séculos foi-se perpetuando a tirania, os castigos cruéis, a desnutrição, a miséria - material e moral dos escravos - e a conseqüente e crescente miséria espiritual de seus senhores.
O medo da força da represália daqueles que detém o poder; o medo de perder o seu próprio status na sociedade, faz com que os que deveriam questionar os erros havidos na sociedade se calem - ou criem teorias segundo as quais as vítimas, ou foram abandonadas pelos deuses, ou são culpadas, elas mesmas, pela situação injusta em que se encontram. É assim que Sêneca teorizou a respeito da escravidão, justificando-a, não como um produto da sociedade, mas como o resultado dos caprichos daquela que decide os destinos de cada homem: a Fortuna.
Interessante é verificar que, com a evolução do conhecimento humano, certas teorias vão contradizendo a si mesmas, não encontrando na realidade nenhum respaldo. Também a sucessão do tempo vai se encarregando de desmistificá-las, de desmascará-las, expondo a sua incongruência com a verdade. Sim, o tempo é, não raro, o grande aliado da verdade: é ele que a vai descortinando, às vezes para que a contemplemos com deslumbramento, às vezes para que tenhamos a nossa ignorância esmagada por ela; mas sempre levando-nos a todos ao encontro da nossa dignidade.
Afirmamos que a preocupação com a pessoa humana para o mundo ocidental surge com o cristianismo - mas especificamente com os ensinamentos de Jesus. O fato é que independente de professarmos ou não qualquer religião, a rejeição a certas idéias, a certos institutos se torna imperativa. A sucessão de erros traz conseqüências nefastas que obrigam a sociedade a se apartar de noções fundamentadas no egoísmo, na soberba, na necessidade de trazer o seu semelhante em posição inferior, humilhante.
Na Idade Média, sob a tênue influência do cristianismo, ainda se verificava a desigualdade social resultante da disparitas iustitiae et pecati.
Embora alguns gostem de assim pensar, não existem seres humanos de segunda classe: o ser humano, considerando o respeito devido à sua dignidade é um só; o mundo é um só.
Os desafios pelos quais tem passado o Direito são os mesmos com os quais se tem defrontado o próprio homem: os avanços deste sempre se refletirão naquele.
Assim, como o próprio homem, que se assemelha e ao mesmo tempo é idiossincrático com relação aos seres de sua mesma espécie, os vários ordenamentos jurídicos pátrios se assemelharão, mas em muitos pontos cada ordenamento deverá refletir as características únicas da sociedade que lhe deu origem.
O Direito deve ser conseqüência do desenvolvimento de cada sociedade.
E é precisamente aquela diversidade que, com relação aos indivíduos,faz com que passem por evoluções sucessivas, que concernentemente ao Direito, faz com que haja transformações que podem ser verificadas através do estudo da História do Direito e do Direito Comparado.

4.0. DISTINGUINDO OS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Direitos da pessoa, direitos humanos, direitos fundamentais, liberdades públicas, direitos essenciais. Várias são as expressões havidas como sinônimas, mas que em realidade têm apenas uma idéia central em comum: a liberdade.
4.3. OS DIREITOS DA PESSOA
Considera-se pessoa o sujeito que atua, que age na natureza. O Direito lhe confere atributos que a tornam especial e a individualizam como sujeito de direitos.
O homem é um ser psicossomático, pois nele, corpo e mente, são interdependentes. A natureza individual humana se reveste de componentes - substâncias, potências, atos propriedades - que são objeto dos direitos básicos de personalidade. E personalidade é precisamente a aptidão para ser sujeito de direitos.
Tanto a pessoa natural quanto a pessoa jurídica são sujeitos de direitos e obrigações. Mas a maioria dos direitos da personalidade se referem exclusivamente à pessoa natural. E isso é fácil de se compreender e verificar ao analisarmos qual é o objeto dos direitos da personalidade. Sabendo-se que objeto de direito são os bens jurídicos tutelados pelo Direito,
As necessidades, os interesses e pretensões do sujeito de direito hão que ser atendidas e satisfeitas. E é buscando atender esse objetivo que o Direito tutela os bens jurídicos. Esses bens jurídicos são, pois, objeto de direito.
Os direitos da personalidade têm por objeto aqueles componentes da natureza humana, aos quais já nos referimos. Explicitamente são eles: “a) a vida; b) a potência vegetativa (forças naturais, crescimento, nutrição, procriação); c) potência sensitiva (sensação, cognição sensitiva, senso comum, fantasia, auto-estima, memória); d) potência locomotiva (ambulação); e) potência apetitiva (apetite sensitivo, concupiscível, irascível); f) potência intelectiva (inteligência, vontade, liberdade, dignidade); g) potência realizada (atos) (Walter Moraes, RDPriv 2/187; RT 590/19).
Os atributos da personalidade são os elementos individualizadores das pessoas no mundo jurídico. É através desses atributos que fica caracterizada a condição individual de cada sujeito de direito. Este será individualizado, portanto, através de cinco atributos: capacidade, status (individual, familiar e social), fama, nome e domicílio.



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